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quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Nota publicada no  Jornal Mural do Ministério Público Federal, do Estado da Bahia, onde trabalha nossa amiga Diana, companheira da comu
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ALICE, Hoje com 9 anos

terça-feira, 17 de agosto de 2010


Saí de casa às 4h. 

São apenas 07:30h e estou num movimentado hospital de Belo Horizonte, para portadores de deficiência física, após 3 horas de viagem num carro municipal, com muitos pacientes. Alice, de apenas 07 meses, no meu colo, mama. 
Vejo, em minha frente um estranho cortejo: passa uma criança balbuciando coisas ininteligíveis, outra, numa cadeira de rodas, gêmeos sem os braços e as pernas, crianças com um andar desajeitado, outros em estado vegetativo repousam numa maca à espera do atendimento, vejo também braços tortos, pernas tortas, rostinhos deformados e na maioria das vezes, imensamente tristes. 

Alice acaba de mamar e dorme tranqüilamente...



 Continuo observando, agora, os pais e mães que tenho pela frente: uns angustiados reclamam do tempo de espera, sempre longo, outro mais adiante grita com o filho que não quer tomar um iogurte, outra mãe fala baixinho com outra mãe que está esperando vaga num hospital melhor. 
Olho, sem querer, para a recepcionista do balcão de informações, sempre sorridente e paciente. Tenho a impressão que ela gostaria de estar em qualquer lugar, menos ali, naquela hora.



Um mundo bem diferente, diga-se de passagem... Um mundo onde nem todas as nossas perguntas terão respostas, onde nos fazem perguntas e nos dão perguntas como respostas. 

Um mundo, aonde amigos novos irão sendo feitos, pois os antigos amigos, têm novos propósitos.


 A deficiência física ainda não é do interesse da comunidade, nem do Estado e muito menos do País, que não têm um programa específico para os deficientes e ainda nos deixa amargar numa fila de espera de meses, jogando por terra um tratamento que quanto mais cedo for iniciado, mais progresso terá.
Tratamento, que quando arcado pela família, levará embora patrimônio e energia de todos os que habitam a mesma casa. Tratamento que dependerá de 07 ou 08 especialistas, que muitas vezes, de especialistas, só tem a especial missão de nos alertar que somos mães, e que não sabemos nada, e que não queremos ouvir nada de verdadeiro sobre o diagnóstico de nossos filhos, que não temos recursos, que não teremos forças, que não teremos mais paz! 


Nesse dia um deles me disse:
“-Sua filha é linda”.
E eu prontamente respondi:
”-E inteligente”.
E ele, para que eu não tivesse dúvidas, concluiu:
“- E deficiente!”.




Sim. Hoje a Alice está com três anos e eu não tenho dúvidas! Alice é deficiente! O médico também. A instituição. O porteiro. O motorista do táxi. O camelô da esquina. A telefonista. O comerciante. A empregada doméstica. A mais linda e bela criatura, que virou artista de televisão...


O Estatuto da Criança e do Adolescente é deficiente. O Município onde a Alice mora é deficiente, não se responsabilizou nem pelo tutor que ela usa para conseguir ficar de pé e nem pela melhoria das viagens que fazemos: na grande maioria das vezes só retornamos para casa por volta das 22h. 



O Estado que governa as leis que não são usadas em benefício da Alice é deficiente.
 O País, sem leis, que não penaliza uma escola que não aceita a Alice, por ser portadora de deficiência, é um País deficiente. 
A família da Alice é deficiente: todos tiveram medo da grande transformação que seria a Alice... 
Todos tiveram medo da morte da Alice.
 Todos tiveram medo durante as 08 cirurgias da Alice. Todos tiveram medo da incapacidade total da Alice. Todos, ainda têm medo da primeira cadeira de rodas da Alice, que chegará em breve...


Para mim, a “grande mãe deficiente”, só me restou uma pergunta:
“-Alice, me ensina a caminhar? ”
Digo caminhar, pois todos acham que a Alice merece andar. Andar é conseguir se deslocar de um local para outro com equilíbrio e dinâmica. Caminhar é mais complexo e mais necessário: caminhar envolve raciocínio, estratégia e muita paciência...

E mais do que andar, Alice precisa caminhar. Eu sou deficiente: não sei caminhar. Hoje tento usar, não com muita expectativa a arte do raciocínio, da estratégia e da paciência, que ainda me falta, muita.


O raciocínio veio chegando de mansinho, quando percebi que só perguntar aos médicos não resolveria e nem mudaria o caso clínico da Alice. Respostas vieram quando resolvi partilhar com outras mães a minha vida e a vida da Alice, quando descobri que elas tinham as mesmas dúvidas, os mesmos receios e muitas vezes não tinham o que eu tinha: comida para comer, roupa para vestir, um abraço em casa para receber na chegada, após mais um dia, longo, de tratamento do filho.

A estratégia veio, súbita: resolvi fazer vestibular. Passei e em breve serei Enfermeira . Quis entender um pouco mais a morte, a vida e a conseqüência de ambas, no coração de outras pessoas.

A paciência .... Bem me dedico a ela todos os dias: antes das viagens, sem horário previsto de retorno. Antes de ir para a faculdade e provar, através de atestados contínuos, que tenho faltas pois estou exercendo, não mais que um direito, uma obrigação legal e civil, de dar continuidade ao tratamento de minha filha.

 Ou quando ouço, uma pergunta assim, (geralmente quem a faz tem os olhos espantados):¨ -O que ela tem?”
Alice tem hoje, um pai, que continua zelando por ela e não deixa de amá-la por causa da deficiência. Tem duas irmãs, que merecem os louros da glória da dicção e do desenvolvimento motor dela e da alegria de saber que tem irmãs sempre prontas para uma brincadeira ou um afago. Tem muitos amigos, via email, via correio, via ônibus, via portaria de hospital, via mundo. 
Tem uma Instituição de Utilidade Pública que dá a ela , além de tratamento gratuito, carinho e dedicação. A Associação Mineira de Reabilitação, foi a única Instituição, que nos “coube”. E lá também está nosso coração. Alice tem hoje uma escola para freqüentar. Tem um novo natal pela frente, novos presentes. Novo ano que chegará cheio de desafios que serão transpostos, novas viagens que serão feitas, novas situações e novas perguntas e dessa vez, com respostas.

... Alice tem a mãe dela. Que ela escolheu. Essa mãe meio que maluca, que não escuta ninguém quando não quer, que vê o que os outros teimam em não enxergar, que fala mais do que devia, que estuda menos do que gostaria, que não tem medo de gente, não tem medo de título e de diploma, que a única oração que faz é sair de casa com ela nos braços às 4h, que conhece o preconceito, o descaso, a ironia, a solidão.

Mas que também conhece o acaso. A surpresa e o sabor da vitória.

Essa mãe tão diferente, se descobriu deficiente!
E ora, veja só, precisa da Alice, que não consegue andar, para continuar aprendendo a caminhar!

Lilian Mello

14/12/2003


....Bom, já se passaram alguns anos.
Estou mais velha, mais cansada, mas o estímulo para lutar por um presente como a Alice continua.

Cada fase sua dificuldade.

Cada dia o seu sol ou sua chuva!

Beijus em todas e todos!








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